A IMAGEM E SEMELHANÇA DO DIVINO

Impossível precisar com exatidão onde começa nossa trajetória, pensamos que ela inicia antes mesmo de nós, em Zé Lopes, Zé de Vina, Dona Zefa, Marlene, Solon, Luiz da Serra, Ginu e tantos outros brincantes de excelência. Alguns desses, a vida nos deu o presente de contemplá-los com nossos próprios olhos. Já dos encantados, só nos chegam relatos da paixão, virtuosismo e total entrega ao Mamulengo.

É provável que nossa trajetória e a deles tenham origem no pulsar das nossas tribos ameríndias, na commedia dell’arte, ou nas máscaras rituais africanas e orientais. E quem sabe não tenha sido um pouco antes, no exato momento em que o imperador chinês Wu Ti e seu mago, “reviveram” a jovem bailarina por meio de teatro, luz e sombra. Ou quiçá antes, mas bem antes, quando em paredes de cavernas, brincando as primeiras mulheres e homens projetavam suas fantasias, medos e desejos em formas de figuras.

Nossa trajetória começa no primeiro pulso de vida de nossos ancestrais, outrora moldados no barro a imagem e semelhança do divino, assim como hoje, o Mamulengo é esculpido na madeira à nossa imagem e semelhança. De Zé Lopes até onde a memória coletiva alcança, para nós tudo começa com eles e com ele.

(Mestre Zé Lopes pintando um mamulengo, Glória do Goitá – PE, final da década de 1990. Foto: Acervo pessoal).

TUDO COMEÇA COM ELE

Tudo começa com ele… José Lopes da Silva Filho, para nós carinhosamente Zezinho do Mamulengo – o marido, o pai, o amigo e o colega de trabalho, mas para o mundo: mestre Zé Lopes. O homem que, ainda menino, aos 10 anos de idade fez seu primeiro mamulengo, e desde então não parou mais. Zé, nasceu no dia 21 de outubro de 1950, no sítio Cortesia, município de Glória do Goitá, cidade da Zona da Mata Norte do Estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil. Vindo de uma família muito humilde, adentrou o mundo dos bonecos apaixonado, com brilho nos olhos e inteiramente comprometido.

Em casa, de início recebeu a reprovação de sua mãe – Dona Severa. Não que a jovem viúva fosse de todo avessa aos gracejos dos bonecos, e de fato não era! Até que ela achava graça naqueles pedacinhos de gente, que lhe arrancavam sorrisos toda vez que ia à cidade vender bolo. A reprovação de Dona Severa era tão somente por medo, medo de ver o filho, ainda menino, “desencaminhar-se” na vida em razão de um ofício que não oferecia estabilidade financeira, e na época visto aos olhos do conservadorismo como algo marginal.

Se em casa Zé Lopes precisou lutar para afirmar-se como artista mamulengueiro, na rua não foi diferente. Nem todos os mamulengueiros gostavam de repassar os segredos de sua arte, mas Zé, curioso, insistente e atrevido como só ele, foi pouco a pouco conquistando um espaço no coração dos mamulengueiros mais experientes e do público. E rapidamente tratou de montar seu próprio Brinquedo, convidou seus tios seu Chico e Zé de Teca e os amigos Zé Cardeira e Zé de Vina para lhe auxiliar dentro e fora da barraca e assim surgiu em 1962 o Mamulengo São José, grupo que rapidamente começou a receber o carinho, respeito e admiração da comunidade de Glória e dos sítios ao redor.

Ainda assim, mesmo a contragosto de sua mãe e tendo que lutar dentro e fora da comunidade mamulengueira por um espaço de reconhecimento, Zezinho seguiu empunhando seus bonecos, e a cada vez que brincava o menino ia deixando de ser Zezinho, para ser Zé, aquele célebre mamulengueiro reconhecido por sua gente, pelos brincantes das cidades vizinhas. No despontar de suas cãs já estava percorrendo o Brasil, de Norte a Sul, de repente abriu suas asas e voou para terras além mar. Já não era mais menino, tinha tornando-se mestre, o mestre Zé Lopes, Patrimônio Vivo de Pernambuco, e quando se encantou rumo a São Saruê, os de cá lhe coroaram Patrono dos Mamulengos de Pernambuco.

(Mestre Zé Lopes ao lado de Clotilde, Simão e Quitéria, início dos anos 2000. Foto: Luiz Abregu).

ENTRE PARTIDAS E RECOMEÇOS

Em 1971, o Mamulengo São José interrompeu suas atividades. Em meio a dificuldades financeiras, Zé toma um caminho semelhante ao de muitos homens e mulheres da época, que viam na cidade de São Paulo – SP a esperança de uma vida com um pouco mais de dignidade e comida na mesa. Durante os 12 anos em que residiu em São Paulo, Zé exerceu outras profissões, mas não deixou de fazer os bonecos e contar as histórias do Mamulengo. Os bonecos e as histórias do nosso povo era o que o mantinha conectado com o seu chão, com a sua tradição, e foi também o que o fez voltar para sua gente.

Em 1982, Zé voltou à Glória do Goitá-PE, encontrou o Mamulengo “praticamente esquecido”, muitos mestres tinham dado um tempo da brincadeira por falta de apoio institucional. Logo Zé começa um minucioso e importante trabalho de reavivamento da brincadeira na região.
Nesse contexto, nasce o Mamulengo Teatro Riso, grupo que o tornaria conhecido nacional e internacionalmente. Assim, em 21 de outubro de 1982, data de seu aniversário, Zé Lopes fundou o Mamulengo Teatro Riso. A apresentação na festa do Levantamento da Bandeira de Nossa Senhora da Conceição, em 02 dezembro daquele mesmo ano, foi um marco não só para o início do grupo, mas sobretudo para a retomada do Mamulengo em Glória do Goitá.

Naquele momento, a formação do Mamulengo Teatro Riso foi composta por Zé Lopes, Zé Cardeira, e novos amigos tocadores. Numa época em que não dispunham de automóvel, para levar alegria às comunidades rurais e cidades vizinhas iam todos com seus cavalos e jumentos, cortando caminho pelas paisagens verde louro da Zona da Mata, quer seja sob o sol escaldante do poente ou sob a claridão das noites de lua cheia. Como dizem os anciãos dessas bandas, “iam pista afora” pelo “oco do mundo” pulando de um sítio para outro, para alegrar a vida do povo da roça, uma gente trabalhadora, cansada, sedenta de um pouco de riso e calor de terreiro. Todos brincavam antes por amor do que estritamente por dinheiro, a brincadeira era um complemento à renda familiar, pois na época não era possível viver exclusivamente dessa arte.

TEATRO RISO SEUS FILHOS E SEUS FRUTOS

Em 1988, chega ao grupo Neide Lopes, companheira de Zé. Começava ali uma parceria de vida que duraria até meados de 2020, quando Zé Lopes deixa a vida rumo à espiritualidade. Em mais de trinta anos Zé e Neide tiveram grandes conquistas no Mamulengo e na vida de casados. A partir desse amor, família e trabalho não se separaram mais. Dos milhares de bonecos que os dois botaram no mundo, três são especiais: as Quitérias: Cida (a primogênita do casal, nascida em agosto de 1989) e Larissa (a irmã do meio, nascida em outubro 1996) e o Simãozinho Theo (o caçula, nascido em maio de 2009). Três filhos e três brincantes, ainda parafraseando os mais velhos: “crianças nascidas e criadas dentro do Mamulengo”, crianças cujo os primeiros brinquedos foram bonecos de mulungu e chita.

A entrada de Neide Lopes (Marinês Tereza do Nascimento – 1975) para o Teatro Riso, proporcionou ao grupo um salto em termos de qualidade técnica dos bonecos e da quantidade de produção desses bonecos e brincadeiras, pois as habilidades de Neide com escultura, costura, pintura, acabamentos, além do auxílio prestado ao mestre Zé Lopes dentro da barraca, e junto com ele o ensinar cotidiano dos seus saberes e fazeres para os filhos elevou o grupo a um lugar de excelência artística e notoriedade na cena bonequeira nacional.

(Neide e Zé Lopes pintando Carolina. Glória do Goitá – PE, 2003. Foto: Acervo pessoal)

Cida Lopes

Cida Lopes (Cirleide do Nascimento Silva) começou a brincar por volta dos 7 anos quando passou a acompanhar os pais nas brincadeiras de terreiro. Na medida em que crescia, a menina foi aprendendo a fazer bonecos, tocar triângulo e zabumba, atuar como Catirina/Mateu, até que entrou de vez para dentro da barraca, primeiro como aprendiz de mamulengueira auxiliando seu pai, em seguida como mamulengueira e fundadora do seu próprio grupo o Mamulengando Alegria. Atualmente, com mais de 20 anos de atuação, além de mamulengueira nos grupos Mamulengando Alegria e Mamulengo Teatro Riso, também é produtora cultural, atriz e arte educadora. Uma forte representante feminina da cultura popular na Zona da Mata pernambucana.

(Mamulengueira Cida Lopes com os Caboclos de Pena, Glória do Goitá – PE, 2021. Foto: Alex Apolonio).

Larissa Lopes

Larissa do Nascimento Silva, também conhecida como Larissa Lopes, é Catirina, bonequeira, tocadora, e cordelista. Assim como a irmã, cresceu aprendendo a arte do Mamulengo no grupo Teatro Riso, durante cerca de 10 anos fez parte do Mamulengando Alegria. Hoje, a jovem brincante, já tem dado os primeiros passos para dentro da barraca como mamulengueira.

(Brincante Larissa Lopes, como Catirina conversando com o boneco Dr. Rodoleira, Glória do Goitá – PE, 2022. Foto: Alex Apolonio)

Theo Lopes

É aprendiz de zabumbeiro e triangueiro, desenvolve suas habilidades musicais nos grupos Mamulengo Teatro Riso e Mamulengando Alegria, desde seus quatro anos.

(Brincante Theo Lopes, tocando zabumba ao lado do boneco Tapagem de Cachoeira, Glória do Goitá – PE, 2022. Foto: Felipe Santos).

Felipe Santos

Jovem folgazão, atua no grupo há cerca de três anos como tocador de rabeca, triângulo e violão. Além de ser o mais recente integrante do grupo, Felipe é um dos poucos que não possui laços consanguíneos com a família Lopes, sendo sua entrada no brinquedo fruto do trabalho de formação que o grupo desempenha na comunidade.

(Felipe Santos tocando rabeca, Glória do Goitá – PE, 2019. Foto: Ângelo Azuos).

(Grupo Mamulengando Alegria numa brincadeira de terreiro, Glória do Goitá – PE, 2022. Foto Alex Apolonio).

Desde sua fundação, o núcleo do Mamulengo Teatro já se mantinha aberto para artistas que não eram da família. Nesse sentido, os processos de transmissão de saberes e aprendizagem, que se alicerçam em torno das vivências e da oralidade, também estavam direcionados tanto aos membros da família quanto aos frequentadores mais assíduos do Ateliê. E, nos últimos 20 anos, o grupo ampliou essa abertura à comunidade abraçando, aprendizes mamulengueiros, bonequeiros, pesquisadores, e inclusive artistas de outras linguagens, isso contribuiu com a maneira do grupo ensinar e aprender, levando a um crescimento pedagógico, simbólico e numérico com a adesão de novos colaboradores como: os tocadores Zé Cardeira e Bilíngue, os bonequeiros José Augusto, Adeilson Estavam (Peu) e Carlos Souza, o folgazão já citado Felipe Santos, o mamulengueiro Eduardo Félix, e mais recentemente o pesquisador e produtor cultural Alex Apolonio.

Em quatro décadas (1982-2022), o Mamulengo Teatro Riso possui muitas conquistas. A primeira delas é o Ateliê Teatro Riso, a primeira sede do grupo, localizado no bairro Nova Glória em Glória do Goitá-PE. Trata-se de um espaço voltado para administração, idealização e materialização dos projetos do grupo, um local de práticas artísticas e formativas voltadas para a comunidade ao entorno. No Ateliê, também estão expostos os bonecos que pertencem a mala do mestre Zé Lopes (in memoriam).

Para além da nossa sede, outro espaço que se origina pelas mãos da família do Lopes é o Museu do Mamulengo de Glória do Goitá, fundado em 2003 por mestre Zé Lopes, pelo artista e pesquisador Fernando Augusto e pela prefeita em exercício Fernanda Paes (PSB), com o nome de Centro de Revitalização do Mamulengo, o espaço é o berço de importantes nomes da cena mamulengueira atual. A importância da iniciativa de Zé Lopes transformou um prédio abandonado em símbolo da Capital Estadual do Mamulengo, local de difusão e formação do nosso teatro de bonecos popular. A partir da década 2010, a família Lopes deixa o Centro de Revitalização para se dedicar a projetos pessoais, desde então o espaço se mantém gerido pela Associação Cultural dos Mamulengueiros e Artesãos de Glória do Goitá – ACMAGG.

Em 2008, como desdobramento dos trabalhos no Ateliê e Mamulengo Teatro Riso, surge o Mamulengando Alegria, grupo inicialmente fundado pelas mulheres da família Lopes (Neide, Cida e Larissa), surgiu buscando dar visibilidade a presença feminina no brinquedo ao pautar o debate sobre a igualdade de gênero por meio dos bonecos. Assim, as brincantes continuaram ao lado de Zé Lopes no Mamulengo Teatro Riso, mas ao mesmo tempo dando vazão aos seus desejos e lutas femininas dentro da cultura popular. Em razão deste trabalho, em 2017, Cida Lopes (co-fundadora do grupo) recebeu do Ministério da Cultura – Governo Federal o Prêmio Culturas Populares Leandro Gomes de Barros, na categoria Mestra da Cultura Popular.

Em suas quatro décadas o Mamulengo Teatro Riso já se apresentou em todo Brasil e no exterior (Portugal, Espanha e Itália). De 2004 a 2018, estivemos em todas as edições do Festival SESI Bonecos do Mundo – o maior festival do gênero já produzido no Brasil. E do mesmo modo, estivemos com os nossos bonecos, de maneira ininterrupta, na FENEARTE, maior feira de negócios do artesanato da América Latina. Além de feiras e festivais como os já citados, premiações e menções honrosas marcam nossa trajetória como grupo, três delas concedidas pelo Governo do Estado de Pernambuco: Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia (2016), concede honraria a Zé Lopes como mestre da Cultura Popular; Patrimônio Vivo de Pernambuco (2016), reconhecendo Zé Lopes como legítimo representante da arte do Mamulengo; e de maneira póstuma, em 2020, o título de Patrono dos Mamulengos de Pernambuco ao mestre Zé Lopes, por meio do projeto de Lei 1449/2020 de autoria do Dep. Henrique Queiroz Filho (PL), aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco – ALEPE.

(Mestre Zé Lopes e Simão, em frente à sede do Governo de Pernambuco, após o mestre receber o título de Patrimônio Vivo. Recife – PE, 2016. Foto: Cida Lopes).

Outros frutos do trabalho que desenvolvemos a partir do Teatro Riso são as pesquisas acadêmicas. Desde 1996 recebemos visitas de pesquisadores/as que relatam em suas dissertações e teses a importância do Mamulengo e da nossa contribuição para manutenção e salvaguarda deste patrimônio.

Todos esses exemplos de frutos citados acima, são para ressaltar a importância do Mamulengo Teatro Riso, que nos inspira a estar sempre em movimento, criando, ensinando, trazendo novas pessoas para o Mamulengo. Como uma árvore de mulungu com imensos galhos, em cada galho um ninho, é nossa natureza derramar semente e continuar repassando o que sabemos para as próximas gerações, com o intuito de manter viva essa tradição, levando a adiante o legado de Zé Lopes e de todas e todos que vieram antes de nós. Estamos aqui em ambiente virtual, estamos dentro da barraca, estamos com ferramentas e mulungu nas mãos, para que essa arte não morra, pelas nossas crianças que amanhã serão as brincantes que darão continuidade a esse trabalho. Viva o Mamulengo!

Mamulengo Teatro Riso, abril de 2022.

(Registro de Zé Lopes e as crianças da comunidade, Glória do Goitá – PE, meados da década de 1990. Foto: Acervo Pessoal).

AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas foram significativas para chegarmos até aqui, por isso somos imensamentes gratos:

Aos mestres mamulengueiros, folgazões e brincantes Zé da Banana e Zé de Vina (in memoriam), Zé Salo, Zuza Preto, Zé de Bibi, Wagner Porto, Davi Texeira, Danilo Cavalcante, Fernando Augusto, Nilsinho de Moura, Luciano da Capoeira, Luiz Preto e Zeca de Aristides.

Aos amigos Giorgio Cossu, Marcelo Lafontana, Lili Rocha, Edjalma Freitas, Raimundo Rodrigues, Luiz Fernando Carvalho, Maria Madeira, Natália Siufi, Lucas Correia (Portal Curta Glória).

As pesquisadoras Elizabeth Oder, Izabela Brochado, Adriana Shineider e Barbara Benatti.

As produtoras Aliança Comunicação (Lina Rosa), Página 21 (Amaro Filho e Cláudia Lisboa), Quitérias (Cida Lopes) e Armorial Interações Culturais (Alex Apolonio).

Associação Pernambucana de Teatro de Bonecos – APTB (Ana Rocha, Jorge Costa e demais membros), Grupo Sobrevento (Luiz André e Sandra Vargas).

Museu do Mamulengo de Olinda-PE e Museu da Marionetta – Portugal.

Aos gestores públicos Fernanda Paes e Eduardo Campos (in memoriam), deputado Henrique Filho, Adriana Paes, Léo Souza e Lucas Alves.

Ao IPHAN, Secult PE e FUNDARPE.

E ao povo de Glória do Goitá por fazerem parte da nossa trajetória desde o começo e sempre.